Fonte :
Lancet 2020; 395: 912–20.
Título:
The psychological impact of quarantine and how to reduce it: rapid review of the evidence
Autores:
Samantha .K. Brooks, Rebecca K. Webster, Louise E. Smith, Lisa Woodland, Simon Wessely, Neil Greenberg e Gideon James Rubin
Desde o surgimento da infecção pelo novo coronavírus de 2019, denominado SARS-CoV 2 (Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2), causador da doença COVID-19 (Coronavirus Disease 2019 ) em escala mundial (pandemia), houve a necessidade de restrições de mobilidade:
Isolamento -> separação das pessoas que foram infectadas pelo SARS-CoV 2 (com ou sem a doença COVID-19) daquelas sem infecção / doença;
Quarentena -> separação e restrição de movimento das pessoas que foram potencialmente expostas ao SARS-CoV 2 para verificar se elas serão infectadas / adoecerão em virtude desse vírus e, assim, reduzir o risco de infecção a pessoas saudáveis.
No dia 26/02/2020, foi publicada, na revista The Lancet, uma revisão das evidências sobre o impacto psíquico causado pela quarentena durante o manejo de algumas doenças anteriores à atual pandemia pelo SARS-CoV 2.
Por que essa revisão é necessária?
A quarentena costuma ser uma experiência muito desagradável: separação dos entes queridos, perda de liberdade, incerteza sobre a situação proveniente de uma doença "nova", além do tédio. Em surtos infecciosos anteriores, houve efeitos dramáticos (suicídio / raiva intensa / ações judiciais) decorrentes da imposição de quarentena.
Devido à pandemia pelo SARS-CoV 2, os formuladores de políticas públicas necessitam, o quanto antes, implementar orientações, ao público, baseadas em evidências, conforme orientação da Organização Mundial de Saúde (OMS).
De 3.166 artigos encontrados, 24 foram incluídos nessa revisão, sendo que a maioria eram transversais (de prevalência). As pesquisas foram realizadas em 10 países, distribuídos da seguinte forma:
-Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS-CoV [Severe Acute Respiratory Syndrome]) -> Taiwan, Canadá, Hong Kong, China.
-Ebola -> Serra Leoa, Senegal, Libéria, Suécia.
-Pandemia pelo Influenza A (H1N1) -> China.
-Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS [Middle East Respiratory Syndrome}) -> Coreia do Sul.
-Associação entre H1N1 e SARS -> Estados Unidos e Canadá (estudo único).
-Influenza Equina -> Austrália.
Preditores pré-quarentena de impacto psicológico
Em relação às características e à demografia dos participantes serem preditores de impacto psicológico durante a quarentena, as evidências foram mistas.
Influenza Equina
Factors influencing psychological distress during a disease epidemic: data from Australia’s first outbreak of equine influenza.
Os proprietários de cavalos em quarentena apresentaram as seguintes características associadas a impactos psicológicos negativos:
idade mais jovem (16 a 24 anos);
nível acadêmico mais baixo;
sexo feminino;
ter um filho (comparando com quem não tinha filhos -> porém, ter três filhos ou mais pareciam fatores protetores).
SARS-CoV
SARS control and psychological effects of quarantine, Toronto, Canada.
Fatores demográficos (estado civil, idade, escolaridade, morar com outros adultos e ter filhos) não estavam associados a resultados psicológicos. Ser profissional de saúde não estava associado a resultados psicológicos negativos.
Understanding, compliance and psychological impact of the SARS quarantine experience.
Profissionais de saúde colocados em quarentena apresentaram sintomas mais graves de estresse pós-traumático em relação ao público em geral, com pontuação significativamente mais alta em todas as dimensões. Os profissionais de saúde também sentiram maior estigmatização do que o público em geral, exibiram mais comportamentos de esquiva após a quarentena, relataram maior perda de renda e foram consistentemente mais afetados psicologicamente: relataram substancialmente mais raiva, aborrecimento, medo, frustração, culpa, desamparo, isolamento, solidão, nervosismo, tristeza, preocupação e eram menos felizes. Os profissionais de saúde também eram muito mais propensos a pensar que estavam doentes e a se preocupar em infectar outras pessoas.
MERS
Mental health status of people isolated due to Middle East respiratory syndrome.
Ter um histórico de doença psiquiátrica foi associado a sentir ansiedade e raiva 4-6 meses após a liberação da quarentena.
Estressores durante a quarentena
Duração da quarentena
Três estudos mostraram que durações mais longas de quarentena estavam associadas especificamente a problemas de saúde mental, sintomas de estresse pós-traumático, comportamentos de esquiva e raiva.
Um estudo mostrou que aqueles em quarentena por mais de 10 dias apresentaram sintomas de estresse pós-traumático significativamente maiores do que aqueles em quarentena mais curta.
Medo de infecção
Os participantes de oito estudos relataram temores sobre sua própria saúde ou medo de infectar outras pessoas.
Por outro lado, um estudo constatou que, embora pouquíssimos participantes estivessem extremamente preocupados em infectar ou transmitir o vírus a outros, aqueles preocupados tendiam a ser mulheres grávidas e aqueles com crianças pequenas.
Frustração e tédio
Demonstrou-se, em vários estudos, que o confinamento, a perda da rotina habitual e o contato social / físico reduzidos com outras pessoas causam tédio, frustração e uma sensação de isolamento em relação ao resto do mundo.
Suprimentos inadequados
Ter suprimentos básicos inadequados (por exemplo, comida, água, roupas ou acomodação) durante a quarentena era uma fonte de frustração.
Quatro estudos descobriram que os suprimentos das autoridades de saúde pública eram insuficientes.
Informações inadequadas
Muitos participantes citaram informações fracas das autoridades de saúde pública como estressores, incluindo diretrizes insuficientemente claras sobre as ações a serem tomadas, além de confusão sobre o objetivo da quarentena.
Estressores pós-quarentena
Finanças
A perda financeira pode ser um problema durante a quarentena, com pessoas incapazes de trabalhar e tendo que interromper suas atividades profissionais sem planejamento avançado; os efeitos parecem duradouros.
Estigma
O estigma de outros foi um tema importante em toda a literatura, continuando frequentemente por algum tempo após a quarentena, mesmo após a contenção do surto.
Os participantes de vários estudos relataram que outros os trataram de maneira diferente: evitando-os, retirando convites sociais, tratando-os com medo e desconfiança e fazendo comentários críticos.
O que pode ser feito para atenuar as consequências da quarentena?
Durante grandes surtos de doenças infecciosas, a quarentena pode ser uma medida preventiva necessária. No entanto, essa revisão sugere que a quarentena é, frequentemente, associada a um efeito psicológico negativo. Durante o período de quarentena, esse efeito psicológico negativo não é surpreendente, mas as evidências de que um efeito psicológico da quarentena pode ser detectado meses ou anos depois, mesmo com um número pequeno de estudos, é mais preocupante, sugerindo a necessidade da implementação de medidas eficazes de atenuação como parte do processo de planejamento de quarentena.
Em relação a fatores de risco para resultados psicológicos desfavoráveis:
Histórico de transtorno psiquiátrico pregresso -> avaliado em apenas um estudo. Porém, como a literatura pregressa sugere que a história psiquiátrica está associada a sofrimento psicológico após qualquer trauma relacionado a um desastre, provavelmente, as pessoas com transtornos psiquiátricos pré-existentes necessitarão de apoio extra durante a quarentena.
Profissionais de saúde -> parece que apresentaram alta prevalência de sofrimento psíquico. Mas, quando esses profissionais em quarentena foram comparados com os que não estavam em quarentena, houve resultados mistos. Esses profissionais devem receber apoio dos gestores de saúde para que o retorno ao trabalho seja facilitado e para que recebam intervenção precoce em busca de saúde mental (se necessário).
Mantenha a quarentena pelo menor tempo possível
A quarentena mais longa está associada a piores resultados psicológicos, talvez, sem surpresa, pois é evidente que os estressores relatados pelos participantes poderiam ter mais impacto a partir de um maior tempo de exposição a essa experiência. Restringir o tempo de quarentena ao que é cientificamente razoável, dada a duração conhecida dos períodos de incubação, e não adotar uma abordagem excessivamente preventiva, minimizaria o efeito nas pessoas. Evidências de outros lugares também enfatizaram a importância das autoridades terem que aderir ao período recomendado de quarentena e não estendê-lo. Para pessoas que já estão em quarentena, é provável que uma extensão, por menor que seja, exacerba qualquer sentimento de frustração ou desânimo.
A imposição de uma barreira, em cidades inteiras, sem prazo de tempo claro para o término (como ocorrido em Wuhan, China), pode ser mais prejudicial do que os procedimentos de quarentena estritamente aplicados e limitados ao período de incubação.
Ofereça o máximo possível de informações às pessoas
As pessoas em quarentena, geralmente, temiam ser infectadas ou infectar outras pessoas. Elas costumavam ter avaliações devastadoras de quaisquer sintomas físicos experimentados durante esse período. Tal medo é uma ocorrência comum para pessoas expostas a uma doença infecciosa preocupante e pode ser exacerbado pelas informações, muitas vezes inadequadas, que os participantes teriam recebido das autoridades de saúde pública, deixando-os incertos sobre os riscos que enfrentavam e por que estavam em quarentena. Garantir que as pessoas em quarentena tenham uma boa compreensão da doença em questão, além das razões que motivaram a quarentena, devem ser uma prioridade.
Forneça suprimentos adequados
As famílias em quarentena precisam receber garantias de que terão suprimentos suficientes para suas necessidades básicas o mais rápido possível. Idealmente, a coordenação da provisão de suprimentos deve ocorrer antecipadamente, com planos de conservação e realocação estabelecidos para garantir que os recursos não acabem, o que, infelizmente, já ocorreu.
Reduza o tédio e melhore a comunicação
O tédio e o isolamento causarão angústia; as pessoas em quarentena devem ser orientadas sobre o que podem fazer para evitar o tédio e receber conselhos práticos sobre técnicas de enfrentamento / gerenciamento do estresse. Ter um telefone móvel funcionando, no momento atual, é uma necessidade, não um luxo.
Um estudo sugeriu que disponibilizar linha telefônica de suporte, composta por enfermeiros com experiência em psiquiatria, configurada para pessoas em quarentena, poderia ser eficaz em termos de fornecer uma rede social. A capacidade de se comunicar com a família e os amigos também é essencial. Particularmente, as mídias sociais podem desempenhar um papel importante na comunicação com os que estão longe, permitindo que as pessoas em quarentena atualizem seus entes queridos sobre sua situação e garantam que estão bem. Portanto, fornecer, às pessoas em quarentena, que se comuniquem diretamente com seus entes queridos pode reduzir sentimentos de isolamento, estresse e pânico.
Também é importante que as autoridades de saúde pública mantenham linhas claras de comunicação com as pessoas em quarentena sobre o que fazer se sentirem algum sintoma. Uma linha telefônica ou serviço online criado especificamente para pessoas em quarentena e com profissionais de saúde que possam fornecer instruções sobre o que fazer no caso de desenvolver sintomas de doenças ajudaria a tranquilizar as pessoas de que serão atendidas caso fiquem doentes. Os benefícios de um recurso desse tipo não foram estudados, mas, é provável que a segurança possa, subsequentemente, diminuir sentimentos como medo, preocupação e raiva.
Existem evidências que sugerem que grupos de apoio especificamente para pessoas que ficaram em quarentena em casa, durante surtos de doenças, podem ser úteis. Um estudo detectou que ter um grupo desse tipo, que permitiu conexão a outras pessoas que passaram pela mesma situação, pode ser sido uma experiência válida e fortalecedora, e pode fornecer às pessoas o apoio que elas acham que não estão recebendo de outras pessoas.
Os profissionais de saúde merecem atenção especial
Os profissionais de saúde, geralmente, ficam em quarentena, e esta revisão sugere que, assim como o público em geral, são afetados, negativamente pelas atitudes estigmatizantes de outros. É possível que os profissionais de saúde, em quarentena, estejam preocupados com a falta de pessoal em seus locais de trabalho e com o trabalho extra de seus colegas.
Estar separado de uma equipe com a qual está acostumado a trabalhar em contato próximo pode aumentar os sentimentos de isolamento dos profissionais de saúde em quarentena. Portanto, é essencial que eles se sintam apoiados por seus colegas imediatos. Durante surtos de doenças infecciosas, verificou-se que o apoio organizacional protege a saúde mental da equipe de saúde em geral, e os gestores devem tomar medidas para garantir que seus funcionários apoiem seus colegas em quarentena.
Altruísmo é melhor do que compulsão
Reforçar que essa quarentena está ajudando a manter outras pessoas seguras, incluindo aquelas particularmente vulneráveis, e que as autoridades de saúde são genuinamente gratas a quem a executa, elas, ode ajudar, apenas, a reduzir o efeito da saúde mental e a melhorar a adesão daqueles em quarentena. Mas. o altruísmo tem seus limites se as pessoas forem orientadas a se colocarem em quarentena sem informações adequadas sobre como manter as pessoas com quem vivem em segurança.
O que não sabemos
A quarentena é uma das várias medidas de saúde pública para impedir a propagação de uma doença infecciosa e, como mostrado nessa revisão, tem um impacto psicológico considerável para as pessoas afetadas. Como tal, há uma questão: saber se outras medidas de saúde pública que impedem a necessidade de impor quarentena (como distanciamento social, cancelamento de reuniões de massa e fechamento de escolas) podem ser mais favoráveis. Pesquisas futuras são necessárias para estabelecer a eficácia de tais medidas.
Embora essa revisão não possa prever, exatamente, o que vai acontecer, ou que recomendações funcionariam para cada população futura em quarentena, foi fornecida uma visão geral dos principais problemas e como eles podem ser corrigidos no futuro.
Conclusão
No geral, essa revisão sugere que o impacto psicológico da quarentena é amplo, substancial, e pode ser duradouro. Isso não significa que a quarentena não deva ser implementada, visto que os efeitos psicológicos da não utilização da quarentena e a permissão da propagação da doença podem ser piores.
No entanto, privar as pessoas de sua liberdade para o bem público, em geral, é muitas vezes controverso, e precisa ser tratado com cuidado. Se a quarentena é essencial, nossos resultados sugerem que os gestores devem tomar todas as medidas para garantir que essa experiência seja a mais tolerável possível para as pessoas. Isso pode ser alcançado:
informando às pessoas sobre o que está acontecendo e o porquê;
explicando por quanto tempo isso continuará;
fornecendo atividades significativas para eles fazerem em quarentena;
fornecendo comunicação clara, garantindo suprimentos básicos (como comida, água e suprimentos médicos);
reforçando o senso de altruísmo que as pessoas deveriam, com razão, estar sentindo.
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